quinta-feira, 5 de maio de 2011

FEZZAN - Histórico sobre a importância do Lençol Freático da Líbia



Uma rara vista aérea da região líbia do Fezzan, em que antigas sociedades florescem e desaparecem assim como o vaivém das chuvas.
Por Charles Bowden
Foto de George Steinmetz

No coração do Saara, a água da chuva que caiu há milênios empoça na cratera vulcânica de Waw na Namus. Ventos carregaram as cinzas da última erupção por 20 quilômetros.
As investigações de Mattingly levam-no até o Mar de Areia de Ubari, onde, por incrível que pareça, há muitos laguinhos da cor de pedras preciosas, alguns púrpura, outros alaranjados, por causa dos minerais e das algas. Eles são a lembrança quase desidratada de uma época anterior, quando o lençol freático corria mais próximo da superfície que hoje. É difícil imaginar, mas um lago do tamanho da Inglaterra, o Megafezzan, existiu ali há cerca de 200 mil anos, quando chuvas eram abundantes e, como provam os antigos canais, os rios corriam pelo centro do deserto.

As mudanças climáticas têm ocorrido feito um interruptor que liga e desliga no Saara. No tempo seco, os lagos minguavam e a vegetação reduzia-se a nichos. Então, quando dias mais úmidos retornavam, os lagos se enchiam e partes do Saara viravam savana. Comunidades humanas pulsaram por lá como uma explosão de plantas depois de uma chuva rara. Nas eras úmidas, prosperavam. Nas secas, encolhiam ou se extinguiam.

Com base em imagens de radar, Kevin White e Nick Drake, membros da equipe do Projeto de Migrações, mapearam a localização de resíduos minerais de antigos lagos e nascentes. Depois, os paleoantropólogos Robert Foley e Marta Mirazón Lahr descobriram artefatos de pedra, pontas de flecha, indícios de fogueiras, túmulos.

Os mais antigos seres humanos na região eram caçadores e coletores que viviam em uma savana há cerca de 130 mil anos. Esse povo foi sumindo à medida que as chuvas começaram a rarear, 70 mil anos atrás. Quando as chuvas voltaram, as pessoas também retornaram. Riscadas nas pedras do deserto estão as memórias de um Saara mais úmido, quando criaturas dependentes de água, como leões, elefantes e rinocerontes, viviam ali.

Algo curioso ocorreu quando a mais recente fase úmida terminou. Há cerca de 5 mil anos, as chuvas cessaram de novo, os lagos desapareceram e o deserto venceu. Dessa vez as pessoas permaneceram. A arte rupestre registra a transição da caça ao pastoreio. Na sequência surgiu uma sociedade que começaria a construir cidades e daria início à agricultura: a civilização garamante.

Os garamantes floresceram ali em um clima bem parecido com o do Saara de hoje. Estudiosos achavam que eram nômades do deserto. Mas escavações no sítio em que ficava Garama, sua capital - e onde hoje se ergue Jarmah -, além de sondagens no terreno feitas pela equipe de Mattingly, revelaram que era um povo sedentário, que vivia de agricultura de oásis. Eles construíram um sofisticado sistema de irrigação que lhes permitia plantar trigo, cevada, sorgo, tâmara e azeitona. Canais subterrâneos - chamados de foggaras - levavam a água dos lençóis freáticos aos campos. Quase mil quilômetros desses canais ainda podem ser detectados. O sistema funcionou bem por centenas de anos. Até que a água "fóssil", armazenada nas épocas chuvosas, começou a desaparecer. E a civilização teve fim.

O Saara parece uma barreira à primeira vista, dividindo a África em dois pedaços. Mas, para os seres humanos que viveram na Líbia por milhares de anos, era um corredor. Ouro, marfim e escravos chegavam ao norte vindos da África subsaariana. Azeite de oliva, vinho, vidros e outros produtos do Mediterrâneo rumavam para o sul. O comércio criou uma imagem duradoura em nossa cabeça: a caravana trilhando seu caminho por imensas dunas.

O corredor do Saara pode ter sido uma das passagens usadas por nossos ancestrais ao deixarem a parte oriental do continente para povoar o resto do mundo. Estudiosos sustentam que os primeiros seres humanos se expandiram para além da África subsaariana rumo à Eurásia, migrando tanto ao longo do rio Nilo quanto através do Sinai ou do mar Vermelho. Agora outra hipótese está sendo explorada: a de que o Fezzan pode ter feito parte de um longo corredor migratório por onde alguns seres humanos modernos chegaram ao litoral do Mediterrâneo e, a partir dali, cruzaram o Sinai. Talvez ao cruzar esse mar de areia, nossos ancestrais tenham caminhado pelo Great Rift Valley, ou, literalmente, o "Vale da Grande Fenda", uma depressão de aproximadamente 6 mil quilômetros de extensão que rasga o território de vários países africanos. E o resultado é sermos quem somos hoje.

Mattingly diz que gosta da arqueologia porque "ela traz lições aos dias de hoje". Mil e quinhentos anos após o declínio dos garamantes, o governo líbio está construindo o "Grande Rio Feito pelo Homem", uma série de imensos aquedutos que fará minar antigas reservas de água subterrânea existentes debaixo do Saara, água que será usada para fazer o deserto brotar. A água que está sendo bombada se depositou ali dezenas de milhares de anos atrás, em tempos bem mais úmidos. O lençol dágua já declina por causa do bombeamento. O projeto tem uma vida estimada de apenas 50 ou 100 anos, um piscar de olhos nessa região. O último capítulo do Fezzan ainda está por ser escrito.
Fonte: http://viajeaqui.abril.com.br/national-geographic/edicao-115/saara-libia-499539.shtml?page=1

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